A urgência da justiça climática e a lente interseccional
Por Maíra Silva, Especialista em Clima do Fundo Agbara

A justiça climática não é meramente uma questão ambiental, mas sim um imperativo de equidade social, enraizado no reconhecimento das injustiças históricas que marginalizam as comunidades negras. No Brasil, seu objetivo primordial reside na responsabilização dos principais vetores da crise climática e na garantia de que as soluções propostas não perpetuem ou agravem as desigualdades já existentes (Louback & Lima, 2022). Em um país marcado por profundas desigualdades estruturais, a intensificação dos eventos climáticos extremos escancara a urgência de uma abordagem que considere as experiências específicas das mulheres negras, historicamente vulnerabilizadas e expostas a riscos ambientais de forma desproporcional.
Para compreender a profundidade da questão, é imprescindível adotar uma lente interseccional, que analise como raça, gênero, classe e território se entrelaçam para moldar as vivências das mulheres negras frente às mudanças climáticas. Como demonstra a pesquisa de Alberti (2024), a maior parte da população exposta a desastres como inundações e movimentos de massa (conhecido como deslizamento, escorregamento, ruptura de talude, queda de barreiras, etc) nas grandes cidades brasileiras é negra e feminina, com as mulheres negras representando a maioria em muitos desses cenários. Essa sobreposição de vulnerabilidades evidencia como o racismo ambiental, que historicamente direciona riscos ambientais para comunidades racializadas (Bullard, 1990; Chavis, 1993), se articula com a opressão de gênero, intensificando os impactos da crise climática sobre as mulheres negras.
Os impactos climáticos têm gênero e raça
Posicionadas historicamente na base da pirâmide da desigualdade econômica, as mulheres negras representam a parcela da população mais vulnerabilizada e suscetível aos eventos extremos. Frequentemente residindo em comunidades marginalizadas e de baixa renda, sendo as mais expostas aos impactos de eventos climáticos extremos, tais como inundações, ondas de calor, poluição atmosférica e escassez de recursos naturais.

Quando pensamos nos fatores de riscos climáticos, de acordo com IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), existe uma intrínseca ligação da vulnerabilidade e a exposição da população. As profundas desigualdades sociais e econômicas, que historicamente estruturam o racismo ambiental, posicionam as comunidades periféricas residentes em áreas de risco e sem planos de adaptação climática com moradias em estados de maior vulnerabilidade, diante de eventos extremos. O Observatório Brasileiro das Desigualdades no relatório de 2024, na avaliação do déficit habitacional, postula que as mulheres negras constituem 58,71% dos casos, ao passo que as mulheres brancas exibem uma situação comparativamente mais favorável. A discrepância se intensifica notavelmente ao observarmos as condições precárias de moradia, onde 76,07% das residências em estado subumano são habitadas por mulheres negras, em oposição a meros 22,84% ocupados por mulheres não negras. Essa vulnerabilidade é ainda agravada por desigualdades estruturais arraigadas, que incluem o acesso limitado a serviços básicos como saúde adequada, saneamento e educação.
A invisibilidade segue na ausência de demonstração que as áreas de maior vulnerabilidade a eventos climáticos nas cidades brasileiras são caracterizadas pela concentração de populações negras, de baixa renda e, significativamente, de mulheres negras chefes de família, como o demonstra a pesquisa de Alberti (2024). Em sua pesquisa, a autora apresenta que 65% da população total exposta a movimentos de massa é negra e 52% é mulher. A interseção dessas variáveis aponta que a maioria das pessoas expostas é de mulheres negras (33%). Além disso, 53% da população total exposta a inundações é negra e 53% mulher. A análise por gênero e raça evidencia que a maioria das pessoas expostas é de mulheres negras (27%), seguida por homens negros (25%).
É importante situar que tal realidade não abarca as mulheres no campo, onde a interseção de conflitos agrários em quilombos e outros segmentos dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) agravam ainda mais esse cenário. Além disso, os dados trazidos nesta pesquisa revelam que os indicadores de vulnerabilidade são ainda mais graves nos municípios das regiões Norte e Nordeste.
Essa realidade, aliada às altas taxas de desemprego e subocupação que afetam desproporcionalmente as mulheres negras, evidencia a urgência de garantir sua participação efetiva nos debates e decisões sobre justiça climática. A ausência dessas vozes perpetua um ciclo de injustiça, onde as soluções propostas podem não incluir as necessidades específicas e as experiências singulares desse grupo.
Caminhos necessários
Apesar de serem as mais impactadas pelas consequências da crise climática, as vozes e as demandas das mulheres negras são frequentemente marginalizadas e invisibilizadas nos espaços de tomada de decisão sobre clima e meio ambiente. Essa sub-representação se manifesta em diversos níveis, desde as instâncias de formulação de políticas públicas até os fóruns de discussão e as organizações da sociedade civil. Essa exclusão priva os processos decisórios de perspectivas cruciais e de conhecimentos construídos a partir da vivência em territórios vulneráveis e da experiência histórica de resistência e adaptação.
É fundamental reconhecer que as mulheres negras não são apenas vítimas passivas dos impactos climáticos, mas também agentes de resiliência e possuidoras de saberes ancestrais valiosos para a construção de estratégias de adaptação e mitigação. Sua histórica atuação na salvaguarda da cultura, no fortalecimento dos laços comunitários e na gestão de negócios familiares e comunitários demonstra um profundo conhecimento das dinâmicas territoriais e ambientais. Garantir seu acesso aos espaços de poder e decisão, bem como a políticas públicas básicas e financiamento adequado, é um passo crucial para a reparação histórica e para a proteção de seus territórios.
Referências bibliográficas
BULLARD, Robert D. Dumping in Dixie: Race, Class, and Environmental Quality. Westview Press, 1990.
CHAVIS, Benjamin. Prefácio. In: BULLARD, Robert D. (Org.). Confronting Environmental Racism: Voices from the Grassroots. South End Press, 1993.
LOUBACK, Andréia Coutinho; LIMA, Letícia Maria R. T. (Orgs.). Quem precisa de justiça climática no Brasil? Brasília, DF: Gênero e Clima: Observatório do Clima, 2022.
Alberti, Camila Bellaver. Justiça climática em áreas urbanas: um olhar sobre vulnerabilidade e exposição em grandes cidades brasileiras. 2024. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
PACTO NACIONAL PELO COMBATE ÀS DESIGUALDADES. Relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades 2024. 2024. Disponível em: https://combateasdesigualdades.org/wp-content/uploads/2024/09/RELATORIO_2024_v3-1.pdf. Acesso em: 4 de mail 2025.